Os que o conhecem, sabem do que falo; os que não, têm uma boa oportunidade de experimentar algo novo.
Escolhi para homenageá-lo uma crônica que ele escreveu por ocasião dos 25 anos do falecimento de Nelson Rodrigues. O poeta da bola falando sobre o contista da mesma – achei pertinente a dupla homenagem, além do que não poderia deixar o Fluminense de fora.
"Nelson Rodrigues, 25 anos sem ele
Até os idiotas da objetividade têm saudades do maior cronista do futebol mundial
Há 25 anos, morria Nelson Rodrigues a quem sempre considerei o maior cronista esportivo do Brasil e do mundo. Nunca pretendeu ser um catedrático, um “expert” na matéria, mas ninguém jamais conseguiu ver o futebol com o olhar contemplativo, poético e apaixonado com que Nelson o viu durante mais de meio século.
Nelson era míope, enxergava pouco, mas tinha uma espantosa sensibilidade para recriar uma partida de futebol, dando-lhe tintas ora épicas, ora dramáticas, ora patéticas.
Uma explicação. A meu juízo, o jornalismo esportivo se divide em três categorias profissionais: o repórter, que lida com a informação, o comentarista, que se ocupa da análise dos fatos e, por fim, o cronista, que não tem maiores compromissos com a realidade.
Nelson tinha plena consciência do seu papel. Ele pouco se lixava para as verdades e versões em torno de um jogo ou de um jogador, de um gol, de um triunfo ou de uma derrota.
– Se os fatos estão contra mim, azar dos fatos... – era o que me respondia quando eu discutia com ele sobre futebol.
Confesso que levei muito tempo até perceber que Nelson tinha razão. Afinal, se não dá pra imaginar o futebol alheio à realidade dos fatos, muito menos dará pra imaginá-lo alheio à fantasia, que era o universo preferido por ele.
Era um otimista desvairado. Torcia pelo Fluminense. Pelo Fluminense distorcia, também. A seleção era, para ele, a pátria de chuteiras.
Cigarro ‘Caporal Douradinho’ entre os dedos, olhar manso, voz cansada, ele sempre me perguntava à saída do Maracanã: “E então, Armando, o que é que nós dois achamos do jogo?” A pergunta tinha apenas sabor de saudação. Ele não queria ouvir a opinião de ninguém. Preferia, sempre, a dele próprio, que não vinha do campo. Vinha de um sonho de 90 minutos. Nelson recriava o jogo, indiferente à realidade. Os fatos estavam contra ele? Pior para os fatos.
Via o jogo ao lado de Gravatinha. Pânico na área do Fluminense: beques vencidos, goleiro batido, a bola quase entrando no gol de Castilho. Um dedinho invisível desviava a bola pela linha de fundo, salvando o gol certo. Milagre do Gravatinha, ditoso personagem que ele criou para explicar as inexplicáveis vitórias do Fluminense. Era o almofadinha. O pó-de-arroz nato e hereditário.
O oposto do Sobrenatural de Almeida. Sobrenatural era o vago sinistro. Não torcia especialmente por ninguém. Tramava na pequena área, às vezes contra, às vezes, a favor.
Jogador do Fluminense não era gente como nós, de carne e osso. Era entidade. Cada um com sua aura. Rodrigo, atacante de parco futebol, revivia, no campo, Cid, o Campeador, herói espanhol do século XII. Assim, Nelson o retratava em sua crônica. Épico. Assim a torcida tricolor o saudava na rua e no estádio. O time do Fluminense, do goleiro ao ponta-esquerda, jogava de sandálias – as pungentes sandálias da humildade. Era a mitologia tricolor na prosa esplêndida de Nelson. Frases musicais. Metáforas sempre primorosas. Pérfidas, quase sempre. Eu mesmo amarguei a pena impiedosa dele. Nunca perdoou que eu tivesse descoberto na seleção húngara do Mundial de 54 uma equipe melhor do que a brasileira.
Nelson Rodrigues, amável carrasco do meu sensato amor pelo futebol. Passei a vida inteira para descobrir que ele tinha razão: o futebol não é nada sem o delírio, sem o doce desatino da paixão. Como a que ele viveu pelo Fluminense e pela Seleção."